REFORMA DO CDC: MAIS UMA OPORTUNIDADE PERDIDA
Todo amante de futebol já passou pelo desgosto de ver um artilheiro perder um gol. Sabe aquela oportunidade na qual até “sua vó” faria o gol, mas que o marmanjo não esticou o pé, não cabeceou, não chutou, e a bola passou incólume pelos travessões acompanhada daquele protesto da torcida? Pois é. Frustração é pouco quando se vê o time perder porque uma ocasião favorável de vitória passou em branco.
Quando olhamos para o projeto de reforma do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e seu impacto sobre o comércio eletrônico temos a mesma sensação da dos torcedores: que oportunidade o Poder Legislativo está perdendo de marcar um belo gol! Não se trata da primeira vez, diga-se, que o Governo dormiu no ponto. A primeira vez foi o Executivo quem deixou a oportunidade passar, com a edição do Decreto n. 7.962/2013, que regulamentou o comércio eletrônico no Brasil. Agora foi a vez do Legislativo que, na Proposta de Lei do Senado n. 281/2012, atualmente na Câmara dos Deputados sob n. 3514/2015, não marcou.
Obviamente que o papel do Decreto n. 7.962/2013 foi essencial para o amadurecimento do comércio eletrônico, que passou a contar com regras objetivas de conduta e procedimentos, como as que obrigaram a correta e ampla identificação do mantenedor do site, consolidação e esquematização do direito de arrependimento, obrigatoriedade de adoção de medidas de segurança, entre outros avanços. Apesar de gerar custos a adaptação dos lojistas virtuais trouxe aos mesmos segurança jurídica, vez que o “limbo” legislativo era prejudicial ao setor, privilegiando a ação de golpistas e maus comerciantes.
Todavia, os benefícios do Decreto n. 7.962/2013 poderiam ter sido consideravelmente maiores, e quem pensa que a timidez legislativa foi curada com o PLS 281/2012 está redondamente enganado. As mesmas questões de vital importância ao setor continuaram a ser ignoradas.
Inicialmente, se fizermos um comparativo entre o Decreto n. 7.962/2013 e o PLS 281/2012, artigo a artigo, iremos encontrar similitudes em pelo menos 85% do texto. Dizemos similitudes mas poderíamos dizer copiar e colar. Como o PLS é anterior ao Decreto, é mais justo dizer que o último copiou disposições do primeiro (e a nosso ver deixou o texto muito mais bem organizado). Poder-se-ia, num cenário assim, esperar que o Poder Legislativo, observando que o setor estava já minimamente regulado, abordar então temáticas muito mais sensíveis e problemáticas, avançando ao invés de somente renovar uma regulamentação já existente. Isso não aconteceu. O direito de arrependimento mudou, a fim de abranger situações específicas, como o caso de produtos personalizados, cosméticos, digitais, etc.? Não. Há regra nacional para realização de entregas, como aplicação de regra específica para e-commerce que utilize os Correios para remessa de mercadorias? Não. Há o esforço legislativo para punição daqueles que fraudam o comércio eletrônico, como os que utilizam cartões de crédito clonados, coletam informações pessoais indevidamente ou alteram os códigos de boletos bancários? Não. Há a obrigatoriedade de implantação de delegacias de polícia especializadas em tecnologia e comércio eletrônico? Não há não. A lista dos “nãos” segue com legisladores e comerciantes apáticos, como se estivessem de mãos atadas diante do caminho inexorável trilhado pela nova legislação.
Não se pode afirmar que o Poder Legislativo esteja priorizando o interesse dos consumidores, por isso não previu mudanças no direito de arrependimento. Às vezes é possível pensar justamente o contrário. Muitos medicamentos, por exemplo, precisam ser preservados dentro de uma faixa de temperatura para não perder suas propriedades. Um medicamento submetido a altas temperaturas poderia não ter efeito terapêutico nenhum. Ocorre que medicamentos não são exceção para o direito de arrependimento, assim como produtos de uso pessoal e perecíveis também não são. O que garante, porém, que entre a entrega e a postagem reversa o consumidor tomou os cuidados necessários com o medicamento? Nada garante. O cuidado com a saúde do consumidor deveria se sobrepor ao efeito financeiro da não devolução do produto? Claro que sim.
Ainda que os exemplos dados sejam extremos, quando falamos de produtos digitais, personalizados, ingressos, e outras hipóteses que não tragam risco direto à saúde do consumidor, ainda assim devermos refletir que ao Direito não é permitido o enriquecimento ilícito de ninguém (como no caso de alguém que copia um arquivo digital antes de se arrepender da compra), bem como não lhe cai bem permitir que um produto personalizado seja devolvido sem vício ou defeito, mesmo após ter gerado impacto no meio ambiente, com utilização de matéria prima, transporte, utilização de papel, entre outros. Mesmo parecendo que o prejuízo é apenas do lojista com a devolução de um produto personalizado, na verdade o prejuízo indireto é coletivo, atingindo também os consumidores.
No que concerne às regras sobre entrega, mais um gol não foi marcado. Alguns Estados e Municípios possuem iniciativas legislativas estaduais e municipais que desejam prever a entrega agendada como obrigação sem custo adicional. Ora, o que se esquece é que muitos comerciantes utilizam os Correios para entrega de produtos, o que inviabiliza a entrega agendada. Qual seria a solução? Se a legislação nacional previsse que sobre as entregas realizadas pelos Correios não pudesse incidir regra obrigando a entrega agendada, muitos lojistas poderiam operar sem temores. Mais uma vez a bola passou pela pequena área sem que o legislador mandasse ela para o gol.
Muitos outros exemplos poderiam ser abordados, mas não é o caso aqui. A reflexão serve para o seguinte: no atual cenário econômico no qual cada centavo parece fazer diferença, por que não usar a legislação como ferramenta útil ao desenvolvimento do e-commerce? Porque não incentivar o setor? É certo que o Poder Legislativo tem muita culpa no cartório ao não se envolver com os problemas e dificuldades do setor antes de criar ou ratificar regras para o mesmo. Porém, os atores do comércio eletrônico também devem fazer seu mea culpa, e o PLS 281/2012 deixa isso bastante claro. Em seu artigo 49-A, aparentemente inserido após o texto original, motivo pelo qual recebeu a letra A. Nele há a previsão de uma exceção quanto ao direito de arrependimento da compra de passagens aéreas. Segundo o referido artigo, as agências reguladoras poderão estabelecer prazos diferentes para cancelamento da compra em “virtude das peculiaridades do contrato”. Em outras palavras, as companhias aéreas mostraram ao legislador que eram dignas de exceção, coisa que nem sempre outros setores fazem durante a elaboração e debate de uma nova lei. Ante tal inércia a lei acaba deixando de contemplar aspectos importantes de conhecimento amplo dentro de um setor, mas as vezes obscuros ao legislador.
Se o procedimento de aprovação do PLS 281/2012 seguir seu rumo normal, sem intervenção do setor do e-commerce de forma mais incisiva, não adiantará chorar o leite derramado. O jogo poderá terminar sem aquele gol que poderia elevar as expectativas e ganhos do comércio eletrônico e que os seus artilheiros deixaram passar em branco, mais uma vez.