Nas primeiras páginas do
best-seller “Justiça – O que é fazer a coisa certa”, Michael Sandel provoca seus leitores com a seguinte questão: é justo ou correto que o comerciante cobre o preço que quiser pelo seu produto? Em um dos países mais liberais do mundo, como são os EUA, essa pergunta parece despropositada. Mas a reflexão de Sandel não termina aí. Ele conta que depois da passagem do furacão Katrina, os comerciantes próximos das vítimas passaram a cobrar fortunas por produtos básicos, como água e combustível, não porque o preço de custo se elevou, mas porque a oferta diminuiu e a procura aumentou. A pergunta sobre justiça na cobrança dos preços ganhou novos contornos, não é mesmo?
A fixação de preços pode sim ter um aspecto moral, como bem apontou André Comte-Sponville, no seu livro “O Capitalismo é Moral?”, já que empresas são compostas de pessoas, e pessoas possuem uma moral, boa ou ruim. Todavia, raramente a moral é o principal fator na fixação de preços – o protagonismo pertence à lei da oferta e da procura, aliados a outros fatores, como pioneirismo, oportunidade, estratégia comercial, etc. Nesse aspecto o chamado
geopricing, ou seja, a mudança de preço do produto de acordo com a localização do consumidor, tem sido uma prática que vem aumentando seu alcance.
Não podemos esquecer que é um direito do comerciante a livre fixação do preço de seus produtos, e tal direito possui raízes constitucionais. A Constituição Federal brasileira assegurou a todas as pessoas a livre iniciativa (art. 1º, inciso IV), cuja aplicabilidade, para se dar de modo pleno, contou com importantes complementos, como o direito à propriedade privada (art. 5º, inciso XXII e 170, inciso II), que inclui a dos meios de produção, direito de exercer atividades empresariais (art. 170, parágrafo único), direito de contratar (utilizando-se a lógica do art. 5º, inciso II) e direito à livre concorrência (art. 170, inciso IV). Assim, todo o arcabouço constitucional que trata a atividade empresarial permite que, a seu exclusivo critério, o empresário fixe o preço de seus produtos e serviços sem a necessidade de autorização do Estado, fugindo a essa regra apenas os produtos e serviços cuja natureza tem impacto sobre o interesse público, como por exemplo, o comércio de combustíveis, armamentos, serviços educacionais, médicos, etc.
Vale salientar, ainda, que a atuação do Estado sobre a fixação do preço ainda se justificaria em caso de abuso do poder econômico
[1] por parte do empresário (formação de cartel, dano coletivo aos consumidores, por exemplo), ou ainda, na defesa de outros valores constitucionalmente garantidos, como o do trabalho e da saúde (preços fixados pela massa falida, ou preço de medicamentos específicos, por exemplo). Tai hipóteses, porém, são excepcionais e não se encaixam no cotidiano do comercio eletrônico em geral.
Sendo assim, é plenamente aceitável que o preço varie de acordo com a região do país, especialmente devido às dimensões continentais brasileiras, bem como as diferenças existentes nas condições de produção (disponibilidade de matéria-prima, mão de obra, carga tributária, etc.), escoamento e venda dos bens, que variam brutalmente de uma região para outra.
Ademais, muitos operadores do e-commerce já descobriram, a duras penas, que há regiões no Brasil que são mais problemáticas e, com o aprimoramento da gestão do contencioso, se descobriu que os custos indiretos no fornecimento de produtos para essas regiões são mais altos do que para outras. Há locais com o Judiciário mais rígido, com clientes mais exigentes e belicosos, com custos mais altos para se tocar um processo judicial ou para realizar a logística reversa da compra, entre outros fatores. Ainda que se tratem de custos futuros, considera-los na fixação do preço das novas transações parece razoável e às vezes até necessário, pois a fixação que não leve em conta os custos diretos e indiretos pode gerar a falência da empresa, ainda que a conta gotas.
Não estamos esquecendo que a Lei 12.529/2011 proíbe “a discriminação ou fornecimento de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços”. Porém a lei precisa ser interpretada em consonância com as normas constitucionais, a fim de que não viole a livre iniciativa e a livre concorrência. Parece óbvio que a correta interpretação da referida lei passa por considerar se os adquirentes estão ou não em condições similares, e isso não é novidade no restante do mercado brasileiro. Ora, o valor de um frete não pode variar se as condições da estrada são diferentes, apesar das distâncias poderem ser iguais? O serviço de motoboy não cobra de forma diferenciada se tem fila ou não no local de entrega? Da mesma forma um produto pode ter preços diferenciados por região geográfica devido à variação de custo para comercialização do mesmo.
Não é muito ressaltar que o operador do comércio eletrônico não é um ser onipresente que faz o produto se materializar tanto na porta do cliente que reside no Sul quanto no que reside no Norte do país. Na verdade, a Internet é apenas um meio de comunicação que possibilita a compra de fornecedores situados em qualquer lugar do globo. Por isso, até o produto chegar à casa do consumidor, muitos são os procedimentos que devem ser cumpridos, com riscos e custos diferenciados. Lógico que isso não dá o direito ao fornecedor de alterar o preço a qualquer momento. No Direito do Consumidor a oferta obriga o proponente, ou seja, se o consumidor do Sul entra em um site e visualiza a oferta por 100, não tem cabimento que ele seja pego de surpresa com a alteração do preço para 200 por variação de sua região. Se a oferta for clara, porém, no sentido de alertar que tal produto só está disponível para determinada região, ou ainda, como alguns sites estão fazendo, solicitar que o consumidor indique sua região antes de adentrar ao site, então não é possível a alegação de propaganda enganosa.
Usado com boa-fé, o
geopricing é uma ferramenta que permitirá relações comerciais mais justas, adequando-as às realidades regionais tão diversificadas como são as brasileiras.
Dr. Ricardo Oliveira
Atua há quase 10 anos na área jurídica, focando na multdisciplinaridade e interação dos mais diferentes ramos do Direito, sempre com foco em empresas do comécio eletrônico e tecnologia da informação.
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